Carta constitucional de 1824 já nasceu polêmica: arbítrio da Coroa ou modelo inovador de governo representativo?
Cecília Helena de Salles Oliveira
O texto constitucional de 1824 estabeleceu os fundamentos da
organização do Estado monárquico e da nação durante o Império, mas, ao
mesmo tempo, foi alvo de disputas, críticas e interpretações. Resultado
das intensas lutas políticas que envolveram o movimento de Independência
dois anos antes, o documento provocou inúmeras reações – na imprensa e
entre os políticos – pelos princípios ali adotados e por ter sido
outorgado por D. Pedro I, o que lhe valeu a denominação de Carta
constitucional, e não Constituição.
Para diversos setores da sociedade brasileira à época, a experiência
das Cortes em Lisboa, a separação de Portugal e a aclamação popular de
Pedro I eram incompatíveis com o fechamento, em novembro de 1823, da
Assembleia Constituinte. Mas foi sobretudo a inclusão do poder
moderador, exercido exclusivamente pelo monarca, que alimentou vivas
polêmicas até o final do Império.
A Carta foi redigida por um pequeno grupo de pessoas escolhidas a dedo
por D. Pedro I: políticos de algumas das principais famílias de
proprietários e negociantes radicadas na região Centro-Sul da América
portuguesa, que desde a época de D. João VI ocupavam lugares importantes
na administração pública e que tinham atuado na Assembleia
Constituinte. Na visão de membros de agremiações republicanas formadas
no Brasil a partir de 1870, a Carta de 1824 era expressão do
“absolutismo” de D. Pedro, manifestação cabal de que a Independência não
trouxera mudanças substanciais nas relações de poder coloniais. Era um
sinal do passado, da permanência da dinastia dos Bragança, das práticas
“despóticas” herdadas da colonização portuguesa.
Por outro lado, diferentes intérpretes, a exemplo de José da Silva
Lisboa, José Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, e Paulino
José de Souza, o Visconde de Uruguai, interpretavam a Carta como
equivalente a Constituições monárquicas da época, ou até mesmo mais
perfeita do que outras. Segundo esta visão, o poder moderador não só era
adequado aos princípios dos governos representativos, como também
possibilitava um equilíbrio entre o Executivo e o Parlamento, permitindo
que o arbítrio da Coroa garantisse a centralização
político-administrativa e a alternância de grupos no poder.
Mas quais seriam os significados deste quarto poder, visto por muitos
historiadores como a característica mais marcante da Carta
constitucional do Império?
Foi o pensador franco-suíço Benjamin Constant (1767/1830)
um dos que mais discutiram a teoria de um quarto poder a ser exercido
pelo rei (ou por um presidente), que se colocaria acima de arranjos
político-partidários, definindo-se como esfera “neutra”. Constant teve
enorme influência no debate em torno da organização de regimes
constitucionais no início do século XIX. Mas suas propostas derivavam
tanto de considerações de Montesquieu acerca do equilíbrio dos poderes
quanto de análises sobre a monarquia inglesa, que servia como modelo
para muitos dos políticos que viveram a Revolução Francesa.
Mesmo antes da Revolução discutia-se que lugar o monarca deveria ocupar
na nova ordem que surgia da crise do Antigo Regime. Nos fins do século
XVIII, pela primeira vez, era colocada em prática uma profunda
transformação no exercício do poder: o monopólio do rei era quebrado por
assembleias eleitas e por Constituições, textos escritos e aprovados
por representantes da sociedade que asseguravam os direitos dos cidadãos
e sua participação nos governos e nas decisões públicas.
Assim, definir uma nova estrutura de Estado e dos poderes políticos
significava estabelecer quem poderia expressar a vontade soberana do
povo. Significava suprimir práticas absolutistas, o que acarretou na
França, entre outras circunstâncias, a decapitação do monarca. Constant
aprofundou esta discussão, especialmente entre 1814 e 1815, quando foi
chamado a apresentar um estudo sobre a Carta francesa outorgada por Luís
XVIII em plena Restauração da monarquia. Nessa obra, denominada Princípios de Política, expôs longa argumentação a respeito da soberania da nação e do modo como poderia ser concretizada.
Constant cogitava que se a soberania da nação estivesse concentrada
nas mãos dos deputados que a representavam, o governante teria função
subalterna, contentando-se em executar as decisões do Legislativo, não
podendo dissolvê-lo ou vetar as leis ali aprovadas. Em compensação, se
prevalecesse o entendimento de que também ao governante cabia uma
parcela da soberania nacional, então ele interferiria no andamento da
administração pública e da legislação, podendo vetar ou suspender as
deliberações do Legislativo, compartilhando com os deputados o exercício
da soberania da nação.
Afirmava ainda que o Parlamento não podia concentrar em suas mãos a
soberania e o poder decisórios, sob pena de substituir-se o despotismo
de um pelo de muitos, como havia ocorrido, a seu ver, no período do
Terror revolucionário. Ao mesmo tempo, criticava o absolutismo
monárquico, defendendo conquistas da Revolução, como a garantia de
direitos, especialmente as liberdades individuais. Buscando um
meio-termo, defendia repartir a soberania do Estado entre quatro
poderes: o Legislativo, composto por uma câmara eleita e outra
vitalícia; o Judiciário, composto por magistrados e juízes vitalícios; o
Executivo, representado pelo governante, mas exercido por ministros
responsáveis perante a nação, e um quarto poder, que preservava a
majestade e a capacidade do rei de governar.
A finalidade do quarto poder seria manter o funcionamento dos demais,
impedindo choques de atribuições, bem como o comprometimento da atuação
do governo e do Estado em razão de conflitos de autoridade. Seria uma
espécie de guardião dos interesses nacionais e dos cidadãos, agindo em
todas as ocasiões em que ministros, parlamentares e juízes
ultrapassassem seus respectivos campos de ação. Colocando o governante
na condição de representante perpétuo do povo, Constant julgava-o capaz
de atuar como poder “conservador”, pois deveria garantir o curso da
administração e das políticas públicas, e como “moderador”, já que seria
um freio a controlar os limites dos outros poderes. Mas havia uma
condição essencial: Constant alertava para a diferença e a separação que
deveriam existir entre o poder “neutro” ou “real” e o poder executivo
ou ministerial. Ainda que os ministros fossem nomeados pelo rei, não
deveria haver sobreposição ou ingerência de uma esfera de poder na
outra. Somente assim o rei poderia agir como força reguladora e
preservadora do equilíbrio político sem, no entanto, ser agente de
violência.
Tratava-se de complexa engenharia política. O que prevaleceu nas
Constituições europeias do início do século XIX foi a concepção de três
poderes de Estado, alocando-se no Poder Executivo, chefiado pelo rei,
muitas das atribuições que Constant identificou no “poder neutro”. Foi
única exceção à Carta de 1826, outorgada em Portugal por D. Pedro,
quando, após a morte de seu pai, D. João VI, abdicou do trono português
em favor de sua filha, D. Maria da Glória. O documento, aliás, era
praticamente o mesmo que fora jurado, em 1824, no Brasil.
Ainda que seja comum considerar-se Constant como o grande
inspirador da Carta de 1824, a leitura do texto revela que os
legisladores brasileiros conferiram sentidos originais ao ideário
político que vinha sendo discutido na Europa e na América desde os fins
do século XVIII. Levaram em conta a experiência acumulada em Cádiz e que
resultou na Constituição espanhola de 1812 e, sobretudo, o debate
promovido nas Cortes de Lisboa em torno da Constituição portuguesa,
promulgada em 1822 [Ver artigo “Ventos liberais para o oeste”, RHBN 86] e
produzida com o auxílio de deputados brasileiros, antes que fosse
oficializada a separação, em setembro daquele ano.
Também orientaram suas opções pelas condições políticas do momento: nem
externa nem internamente a autoridade do governo estabelecido no Rio de
Janeiro estava reconhecida. Tal situação demandava a urgente conclusão
de um texto constitucional que legitimasse o Império recém-fundado e
desse respaldo para o reconhecimento internacional, assim como para
negociações com lideranças políticas que desconfiavam do
constitucionalismo de D. Pedro.
Por outro lado, o trabalho realizado durante o funcionamento da
Assembleia Constituinte foi inteiramente incorporado. Não seria possível
ao governo remeter, em meados de dezembro de 1823, portanto cerca de um
mês após o seu fechamento, o projeto constitucional para a apreciação
das Câmaras das vilas e cidades do Império. Órgãos que representavam os
direitos civis da população, as Câmaras foram chamadas para se
manifestar como tentativa de diminuir as repercussões do fechamento e
mostrar que o governo tinha interesse em ouvir as demandas da sociedade.
No que diz respeito ao poder moderador, a Carta de 1824
determinava que a figura do Imperador era “inviolável e sagrada”, não
estando “sujeita à responsabilidade alguma” . No exercício desse poder, o
Imperador seria auxiliado por um Conselho de Estado e desempenharia as
seguintes atribuições: nomear os senadores, escolhidos em listas
tríplices pelos eleitores provinciais; convocar o Poder Legislativo
extraordinariamente; sancionar decretos e resoluções do Poder
Legislativo para que tivessem força de lei; aprovar ou suspender as
resoluções dos conselhos provinciais; prorrogar ou adiar os trabalhos
legislativos; dissolver a Câmara dos deputados “nos casos em que exigir a
salvação do Estado”; nomear e demitir “livremente” os ministros de
Estado; suspender magistrados acusados de irregularidades; perdoar ou
moderar penas impostas a réus condenados; e conceder anistia.
Entretanto, como o Imperador também era o chefe do Poder Executivo,
ainda que este fosse exercido pelos ministros, o documento não
explicitava com todas as letras um dos pontos-chave da teoria de
Constant, o da separação entre poder real e poder ministerial, e criava
propositalmente ambiguidades sobre a esfera de atuação efetiva do
monarca.
Logo surgiram divergentes interpretações em torno da Carta. Elas podem
ser entendidas como manifestações de projetos distintos do Império, de
possibilidades históricas abertas com a Independência, em curso na
primeira metade do século XIX. Foram marcadas por conflitos nos quais
ora o Estado se sobrepunha à nação, o que foi feito com a outorga da
Carta de 1824, ora a nação enfrentava o Estado, como no momento da
Abdicação, quando dentro e fora do Parlamento a sociedade cobrou de D.
Pedro as liberdades prometidas com a Independência.
A partir de meados do século XIX, esse embate assumiu outros contornos,
alimentado pela polêmica entre o princípio de que “o rei reina e não
governa”, defendido por liberais, como Teófilo Ottoni (1807-1869), e o
pressuposto de que o rei não só reina, mas governa e administra,
defendido por conservadores, como o Visconde de Uruguai. Esta discussão
manteve-se acesa até o final do Império e foi argumento poderoso usado
pelos republicanos contra o regime monárquico.
Cecília Helena de Salles Oliveiraé professora titular no Museu Paulista da USP. Organizou, junto com Izabel Marson, Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil, 1780/1860. São Paulo, EDUSP, 2013.Fonte: http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/confronto-de-poderes
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