sábado, 30 de novembro de 2013

Meios de comunicação e os movimentos sociais

Para o filósofo Pierre Lévy, os governantes brasileiros não ouviram as ruas


Imagem: Reprodução / Twitter

O filósofo Pierre Lévy já falava sobre inteligência coletiva antes mesmo da popularização da internet e da criação de comunidades virtuais e projetos como a Wikipédia. Em 2002, oito anos antes da Primavera Árabe, foi um dos primeiros a publicar um livro sobre ciberdemocracia, em que dizia que movimentos poderiam organizar-se pela web e desafiar o sistema político. A recente onda de manifestações no Brasil empolgou o filósofo, que participou delas pela internet, divulgando informações e palavras de ordem. “Os protestos foram muito positivos, houve uma tomada de consciência”, afirmou a ÉPOCA na semana passada, após participar do I Congresso Internacional de Net-Ativismo da Universidade de São Paulo (USP).


Para Lévy, a multiplicidade de expressões na internet enriquece a política e permite a formação de uma esfera pública mundial. “O monopólio das expressões públicas não existe mais. Todo mundo está se expressando pelas redes sociais. Essa é a verdadeira liberdade de expressão.” Mesmo com a ampla divulgação de textos e vídeos feitos por pessoas não ligadas aos grandes grupos de mídia, o filósofo não crê que os meios tradicionais de comunicação desaparecerão. “As coisas se tornam mais complexas.”

Nascido na Tunísia em 1956 e atualmente professor da Universidade de Ottawa, no Canadá, Lévy continua a pesquisar o poder da inteligência coletiva. Hoje, um dos seus interesses é a customização do processamento de dados na internet. Governos, empresas e diferentes grupos precisarão, segundo ele, ser capazes de organizar grandes massas de dados (o chamado big data) para se orientar na realidade. Nas últimas eleições americanas, por exemplo, Barack Obama contava com uma equipe de engenheiros para levantar, filtrar e classificar informações sobre seus eleitores e, então, conduzir sua campanha. Lévy diz que, no futuro, todos os jogos de poder se darão pelo mundo dos softwares.

Qual é a sua avaliação sobre os protestos no Brasil?Eu nasci na Tunísia, depois me tornei francês e depois me tornei canadense. Eu sou um pouco tunisiano, um pouco francês, um pouco canadense e também um pouco brasileiro, porque eu venho aqui há 25 anos. Venho para cá a cada três anos e tenho muitos amigos aqui. Quando eu soube dos protestos no Brasil, que foram organizados pelas mídias sociais, eu entrei no Twitter e participei. Eu retuitei em português alguns temas dos protestos. Eu dei algumas entrevistas sobre isso, mas não muitas. Há muitos anos, a internet é uma nova ferramenta de expressão da população, uma nova forma de coordenar movimentos sociais. Eu achei ótimo que isso estava ocorrendo no Brasil, que também é meu país.

A violência dos protestos prejudica seus objetivos principais?De maneira geral, eu sou contra a violência. Jogar coquetéis molotov nas ruas não é algo bom. E também sou contra a violência da polícia. Existem algumas formas de mudar um governo: pode ser pela violência, pelos meios constitucionais e pela atuação de grupos políticos e pela liberdade de expressão. Vocês não estão combatendo a democracia, já estão nela. É bem diferente do que acontece nos países árabes. O que acontece aqui no Brasil não é pela democracia, e sim contra a corrupção, para que o país tenha melhores equipamentos e infraestrutura, melhores sistemas de saúde e de educação. Vocês já têm democracia, mas o que está bom para umas pessoas não está para outras.

Grandes mobilizações têm ocorrido sem a definição de líderes e sem uma lista unificada de demandas. É possível ter mudanças sociais profundas dessa maneira?No caso do Brasil, os protestos foram muito positivos, houve uma tomada de consciência. E havia uma agenda. Eu discordo de que não há listas de reivindicações. Houve protestos contra o aumento de tarifas do transporte público, por mais transparência dos governos e melhores serviços. Tem sido uma experiência muito importante e de evolução da sociedade brasileira.

Os governantes ouviram as vozes da população nas ruas?Uma das principais reivindicações dos protestos foi o fim da corrupção. Eles ouviram? A corrupção acabou? Não, eles não ouviram.

Com o amplo uso da internet e das redes sociais para publicar informações, os meios de comunicação de massa estão ameaçados?Eu odeio a mídia tradicional [risos]. A questão do monopólio das expressões públicas não existe mais. Todo mundo está se expressando pelas redes sociais. Essa é a verdadeira liberdade de expressão.

Os grandes grupos tendem a desaparecer?Todo o sistema se transformará e continuará a evoluir. Não existe isso de algo desaparecer e ser substituído por outra coisa completamente nova. Sempre surgem novas camadas, as coisas se tornam mais complexas. Se você tem Twitter, pode ver que as pessoas estão sempre publicando links de meios de comunicação tradicionais. E esses meios têm blogs e também têm perfis nas redes sociais. A mídia tradicional imita a redes sociais. E as redes sociais citam os meios tradicionais. Dessa forma, todo o sistema se torna mais complexo, como sempre.

A profissão de jornalista também está ameaçada?No século XVIII, o trabalho de milhares de pessoas era, unicamente, carregar água. Então, porque eu quero proteger o trabalho dessas pessoas, vou deixar de instalar encanamentos nas casas? No futuro, iremos precisar de pessoas que são muito competentes em comunicação em geral. Nós sempre vamos precisar delas.

Amanda Polato
Época


Fonte: http://www.folhapolitica.org/2013/11/para-o-filosofo-pierre-levy-os.html

Violência contra as Mulheres

Contra a violência física e simbólica às mulheres



Na sociedade em que vivemos, da maneira com que vivemos, os homens são autorizados a pensar e sentir que o corpo das mulheres não vale nada, que as mulheres são menos sujeito do que eles são

Por Jully Soares, no Blogueiras Feministas
Dentre todos os temas de discussão levantados pelas feministas, a violência contra as mulheres, em especial a violência doméstica, continua sendo o tema de maior impacto na sociedade. Seja para vender o seu produto através da “sedução” que a violência é capaz de realizar, seja para realmente provocar a população para perceber a gravidade da questão, a mídia tem colocado a violência contra as mulheres como pauta com bastante frequência, gerando quase um uníssono que diz: “nós não queremos a violência contra as mulheres”.
Às vezes, parece inclusive ser um assunto pautado até demais, podendo fazer algumas pessoas pensarem: “poxa, mas vocês vão falar disso mais uma vez?”. Mas, é interessante perceber que, por mais que se fale no assunto de maneira reiterada, já há décadas, ainda vemos todos os dias a violência sendo praticada contra as mulheres. É incrível, você pode perguntar a cada pessoa que conhece, quase todas dirão que conhecem alguma mulher que viveu ou vive em situação de violência.
Quadro O Rapto das Sabinas, de Pietro da Cortona
O fato de a violência contra as mulheres persistir, apesar de tantos esforços para freá-la, mostra o quanto está inserida – profundamente – em todas as relações sociais. Na maioria das vezes, pensamos nas mulheres que são agredidas fisicamente por seus parceiros e que denunciam isso ou, simplesmente, não conseguem esconder as agressões. Ou seja, na maior parte das vezes em que o assunto da violência contra a mulher vem à tona, a violência doméstica é aquela que recebe maior atenção.
Bem, talvez os dados do Mapa da Violência de 2012 aliados à vivência diária ajudem a compreender melhor o fenômeno. Em 2011, 71,8% das mulheres que sofreram violência física foram agredidas em suas residências, enquanto 43,4% (a maior porcentagem entre todas as categorias) foram agredidas por seus parceiros ou ex-parceiros. Também os casos de todos os dias, como o da mulher que teve os braços e perna cortados com facão pelo companheiro neste mês ou da que foi morta a marteladas no mês passado deixam a imagem da violência doméstica muito mais evidente para nós.
Entretanto, mais alguns dados do Mapa da Violência revelam ainda um pouco mais o assunto: numa análise quantitativa das mulheres – e meninas – que foram atendidas em 2011, como vítimas de violência física, podemos ver que a partir dos 10 anos os pais (não “pais e mães”; apenas “pais”) são os principais responsáveis pelas agressões. A partir dos 15 anos, pai e mãe deixam de ser os principais perpetradores, “passando a vez” para os namorados, companheiros e maridos das adolescentes e mulheres. A partir dos 60 anos, são os filhos os que assumem lugar de destaque nesse tipo de violência.
Surpresa? É como se ainda estivéssemos em séculos atrás, quando as mulheres pertenciam aos pais – aos homens –, passando depois a pertencer a seus maridos. É como se as mulheres fossem uma coisa formada de carne e de sentimentos de pouco valor. Carne e sentimentos que pudessem ser consumidos, usados ao bel-prazer dos homens, sem consequências. Uma carne que pode ser rasgada, cortada, usada para o prazer dos homens. Sentimentos que não precisam ser levados em conta porque, afinal, “são mulheres”. São “só mulheres.”
Essa outra face da violência, a violência simbólica, que não recebe a mesma atenção da mídia ou das conversas do dia-a-dia é, na verdade, a forma de violência que permite chegar à violência física contra as mulheres. Porque, na sociedade em que vivemos, da maneira com que vivemos, os homens são autorizados a pensar e sentir que o corpo das mulheres não vale nada, que as mulheres são menos sujeito do que eles são. Basta se atentar para a vida cotidiana. Das cantadas que nos fragmentam em peitos e bundas, em objetos de consumo do outro; às cobranças por sexo (mesmo que sem vontade); passando por atitudes que nos colocam como AS responsáveis pelos cuidados das pessoas, dos filhos e filhas, do trabalho doméstico.
O lugar de subalternidade tão conferido às mulheres carrega, na maioria das vezes, uma violência que incide sobre nós: calada, invisível, sorrateira. E, devido ao sexismo de cada dia, bem como ao domínio sobre as mulheres, se sentimos essa violência é porque somos “mulheres”. E se denunciamos essa violência, somos “mulherzinhas”. Se não denunciamos essa violência, somos “mulherzinhas” também.
No final das contas, seremos sempre “mulherzinhas”. Porque seremos sempre menos enquanto a sociedade inteira entender que existem apenas dois sexos (ou dois gêneros) e, que essa dualidade precisa necessariamente ser polarizada entre mais e menos, de maior ou de menor valor. A violência física dói muito, assusta e aterroriza. Mas, enquanto a violência simbólica não for considerada VIOLÊNCIA, a violência física continuará encontrando espaço para se fazer presente das piores maneiras possíveis, todos os dias.
Hoje, 25 de novembro, Dia Latino-Americano e Caribenho de Luta Contra a Violência à Mulher e Dia Internacional da Eliminação da Violência contra a Mulher, precisamos dar atenção ao fato de que as mulheres sofrem violência todos os dias. Todos os dias. Por homens, por mulheres, pela mídia, pelo Estado, pela Igreja… Mas enquanto essas formas de violência simbólica não tiverem importância, dificilmente poderemos erradicar a violência física que também nos assombra diariamente.
Jully Soares é jovem pensadora e militante feminista, negra e bissexual. Escreve no blog Inspiração Política & Literária.

Fonte: http://revistaforum.com.br/blog/2013/11/contra-a-violencia-fisica-e-simbolica-as-mulheres/

Carta constitucional de 1824 - Confronto de poderes


Carta constitucional de 1824 já nasceu polêmica: arbítrio da Coroa ou modelo inovador de governo representativo?

Cecília Helena de Salles Oliveira

O texto constitucional de 1824 estabeleceu os fundamentos da organização do Estado monárquico e da nação durante o Império, mas, ao mesmo tempo, foi alvo de disputas, críticas e interpretações. Resultado das intensas lutas políticas que envolveram o movimento de Independência dois anos antes, o documento provocou inúmeras reações – na imprensa e entre os políticos – pelos princípios ali adotados e por ter sido outorgado por D. Pedro I, o que lhe valeu a denominação de Carta constitucional, e não Constituição.
Para diversos setores da sociedade brasileira à época, a experiência das Cortes em Lisboa, a separação de Portugal e a aclamação popular de Pedro I eram incompatíveis com o fechamento, em novembro de 1823, da Assembleia Constituinte. Mas foi sobretudo a inclusão do poder moderador, exercido exclusivamente pelo monarca, que alimentou vivas polêmicas até o final do Império.
A Carta foi redigida por um pequeno grupo de pessoas escolhidas a dedo por D. Pedro I: políticos de algumas das principais famílias de proprietários e negociantes radicadas na região Centro-Sul da América portuguesa, que desde a época de D. João VI ocupavam lugares importantes na administração pública e que tinham atuado na Assembleia Constituinte.  Na visão de membros de agremiações republicanas formadas no Brasil a partir de 1870, a Carta de 1824 era expressão do “absolutismo” de D. Pedro, manifestação cabal de que a Independência não trouxera mudanças substanciais nas relações de poder coloniais. Era um sinal do passado, da permanência da dinastia dos Bragança, das práticas “despóticas” herdadas da colonização portuguesa.
Por outro lado, diferentes intérpretes, a exemplo de José da Silva Lisboa, José Antônio Pimenta Bueno, o Marquês de São Vicente, e Paulino José de Souza, o Visconde de Uruguai, interpretavam a Carta como equivalente a Constituições monárquicas da época, ou até mesmo mais perfeita do que outras. Segundo esta visão, o poder moderador não só era adequado aos princípios dos governos representativos, como também possibilitava um equilíbrio entre o Executivo e o Parlamento, permitindo que o arbítrio da Coroa garantisse a centralização político-administrativa e a alternância de grupos no poder.
Mas quais seriam os significados deste quarto poder, visto por muitos historiadores como a característica mais marcante da Carta constitucional do Império?
            Foi o pensador franco-suíço Benjamin Constant (1767/1830) um dos que mais discutiram a teoria de um quarto poder a ser exercido pelo rei (ou por um presidente), que se colocaria acima de arranjos político-partidários, definindo-se como esfera “neutra”. Constant teve enorme influência no debate em torno da organização de regimes constitucionais no início do século XIX. Mas suas propostas derivavam tanto de considerações de Montesquieu acerca do equilíbrio dos poderes quanto de análises sobre a monarquia inglesa, que servia como modelo para muitos dos políticos que viveram a Revolução Francesa.
Mesmo antes da Revolução discutia-se que lugar o monarca deveria ocupar na nova ordem que surgia da crise do Antigo Regime. Nos fins do século XVIII, pela primeira vez, era colocada em prática uma profunda transformação no exercício do poder: o monopólio do rei era quebrado por assembleias eleitas e por Constituições, textos escritos e aprovados por representantes da sociedade que asseguravam os direitos dos cidadãos e sua participação nos governos e nas decisões públicas.
Assim, definir uma nova estrutura de Estado e dos poderes políticos significava estabelecer quem poderia expressar a vontade soberana do povo. Significava suprimir práticas absolutistas, o que acarretou na França, entre outras circunstâncias, a decapitação do monarca. Constant aprofundou esta discussão, especialmente entre 1814 e 1815, quando foi chamado a apresentar um estudo sobre a Carta francesa outorgada por Luís XVIII em plena Restauração da monarquia. Nessa obra, denominada Princípios de Política, expôs longa argumentação a respeito da soberania da nação e do modo como poderia ser concretizada.
 Constant cogitava que se a soberania da nação estivesse concentrada nas mãos dos deputados que a representavam, o governante teria função subalterna, contentando-se em executar as decisões do Legislativo, não podendo dissolvê-lo ou vetar as leis ali aprovadas. Em compensação, se prevalecesse o entendimento de que também ao governante cabia uma parcela da soberania nacional, então ele interferiria no andamento da administração pública e da legislação, podendo vetar ou suspender as deliberações do Legislativo, compartilhando com os deputados o exercício da soberania da nação.
Afirmava ainda que o Parlamento não podia concentrar em suas mãos a soberania e o poder decisórios, sob pena de substituir-se o despotismo de um pelo de muitos, como havia ocorrido, a seu ver, no período do Terror revolucionário. Ao mesmo tempo, criticava o absolutismo monárquico, defendendo conquistas da Revolução, como a garantia de direitos, especialmente as liberdades individuais. Buscando um meio-termo, defendia repartir a soberania do Estado entre quatro poderes: o Legislativo, composto por uma câmara eleita e outra vitalícia; o Judiciário, composto por magistrados e juízes vitalícios; o Executivo, representado pelo governante, mas exercido por ministros responsáveis perante a nação, e um quarto poder, que preservava a majestade e a capacidade do rei de governar.
A finalidade do quarto poder seria manter o funcionamento dos demais, impedindo choques de atribuições, bem como o comprometimento da atuação do governo e do Estado em razão de conflitos de autoridade. Seria uma espécie de guardião dos interesses nacionais e dos cidadãos, agindo em todas as ocasiões em que ministros, parlamentares e juízes ultrapassassem seus respectivos campos de ação. Colocando o governante na condição de representante perpétuo do povo, Constant julgava-o capaz de atuar como poder “conservador”, pois deveria garantir o curso da administração e das políticas públicas, e como “moderador”, já que seria um freio a controlar os limites dos outros poderes. Mas havia uma condição essencial: Constant alertava para a diferença e a separação que deveriam existir entre o poder “neutro” ou “real” e o poder executivo ou ministerial. Ainda que os ministros fossem nomeados pelo rei, não deveria haver sobreposição ou ingerência de uma esfera de poder na outra. Somente assim o rei poderia agir como força reguladora e preservadora do equilíbrio político sem, no entanto, ser agente de violência.
Tratava-se de complexa engenharia política. O que prevaleceu nas Constituições europeias do início do século XIX foi a concepção de três poderes de Estado, alocando-se no Poder Executivo, chefiado pelo rei, muitas das atribuições que Constant identificou no “poder neutro”. Foi única exceção à Carta de 1826, outorgada em Portugal por D. Pedro, quando, após a morte de seu pai, D. João VI, abdicou do trono português em favor de sua filha, D. Maria da Glória. O documento, aliás, era praticamente o mesmo que fora jurado, em 1824, no Brasil.
            Ainda que seja comum considerar-se Constant como o grande inspirador da Carta de 1824, a leitura do texto revela que os legisladores brasileiros conferiram sentidos originais ao ideário político que vinha sendo discutido na Europa e na América desde os fins do século XVIII. Levaram em conta a experiência acumulada em Cádiz e que resultou na Constituição espanhola de 1812 e, sobretudo, o debate promovido nas Cortes de Lisboa em torno da Constituição portuguesa, promulgada em 1822 [Ver artigo “Ventos liberais para o oeste”, RHBN 86] e produzida com o auxílio de deputados brasileiros, antes que fosse oficializada a separação, em setembro daquele ano.
Também orientaram suas opções pelas condições políticas do momento: nem externa nem internamente a autoridade do governo estabelecido no Rio de Janeiro estava reconhecida. Tal situação demandava a urgente conclusão de um texto constitucional que legitimasse o Império recém-fundado e desse respaldo para o reconhecimento internacional, assim como para negociações com lideranças políticas que desconfiavam do constitucionalismo de D. Pedro.
Por outro lado, o trabalho realizado durante o funcionamento da Assembleia Constituinte foi inteiramente incorporado. Não seria possível ao governo remeter, em meados de dezembro de 1823, portanto cerca de um mês após o seu fechamento, o projeto constitucional para a apreciação das Câmaras das vilas e cidades do Império. Órgãos que representavam os direitos civis da população, as Câmaras foram chamadas para se manifestar como tentativa de diminuir as repercussões do fechamento e mostrar que o governo tinha interesse em ouvir as demandas da sociedade.
            No que diz respeito ao poder moderador, a Carta de 1824 determinava que a figura do Imperador era “inviolável e sagrada”, não estando “sujeita à responsabilidade alguma” . No exercício desse poder, o Imperador seria auxiliado por um Conselho de Estado e desempenharia as seguintes atribuições: nomear os senadores, escolhidos em listas tríplices pelos eleitores provinciais; convocar o Poder Legislativo extraordinariamente; sancionar decretos e resoluções do Poder Legislativo para que tivessem força de lei; aprovar ou suspender as resoluções dos conselhos provinciais; prorrogar ou adiar os trabalhos legislativos; dissolver a Câmara dos deputados “nos casos em que exigir a salvação do Estado”; nomear e demitir “livremente” os ministros de Estado; suspender magistrados acusados de irregularidades; perdoar ou moderar penas impostas a réus condenados; e conceder anistia.
Entretanto, como o Imperador também era o chefe do Poder Executivo, ainda que este fosse exercido pelos ministros, o documento não explicitava com todas as letras um dos pontos-chave da teoria de Constant, o da separação entre poder real e poder ministerial, e criava propositalmente ambiguidades sobre a esfera de atuação efetiva do monarca.
 Logo surgiram divergentes interpretações em torno da Carta. Elas podem ser entendidas como manifestações de projetos distintos do Império, de possibilidades históricas abertas com a Independência, em curso na primeira metade do século XIX.   Foram marcadas por conflitos nos quais ora o Estado se sobrepunha à nação, o que foi feito com a outorga da Carta de 1824, ora a nação enfrentava o Estado, como no momento da Abdicação, quando dentro e fora do Parlamento a sociedade cobrou de D. Pedro as liberdades prometidas com a Independência.
A partir de meados do século XIX, esse embate assumiu outros contornos, alimentado pela polêmica entre o princípio de que “o rei reina e não governa”, defendido por liberais, como Teófilo Ottoni (1807-1869), e o pressuposto de que o rei não só reina, mas governa e administra, defendido por conservadores, como o Visconde de Uruguai. Esta discussão manteve-se acesa até o final do Império e foi argumento poderoso usado pelos republicanos contra o regime monárquico.
Cecília Helena de Salles Oliveiraé professora titular no Museu Paulista da USP. Organizou, junto com Izabel Marson, Monarquia, Liberalismo e Negócios no Brasil, 1780/1860. São Paulo, EDUSP, 2013.

Fonte:   http://www.revistadehistoria.com.br/secao/artigos-revista/confronto-de-poderes