Não penso, logo relincho
Um glossário com a lista dos principais clichês
repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo
de violência e exclusão. Por Matheus Pichonelli
por Matheus
Pichonelli — publicado 26/11/2013 15:09, última modificação
27/11/2013 20:51
Dizem que uma mentira repetida à exaustão se
transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão
é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o
discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para
legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo
da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho que
pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma
indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as
mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos
leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de
moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo
cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao
replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma
fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê
repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas
relincho*.
“Negros têm preconceitos contra eles
mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio
racismo, é a frase mais falada das redes sociais durante o Dia da
Consciência Negra. É propagada justamente por quem mais precisa
colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca
tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de
emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de
quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira
não circula em ambientes frequentados pela elite financeira e
intelectual do País, como universidades, centros culturais,
restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação
homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar
que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os
processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio
país.
“Não precisamos de consciência preta,
parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas
perguntas no contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não
é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a consciência
humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da
pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores
de exclusão e agressão?
“Héteros morrem mais do que
homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma
régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto
têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por
ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não
necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O
argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém
acorda em um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça
de alguém só porque este alguém gosta e anda de mãos dadas com
alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio contra
heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma
jaguatirica em plena Avenida Paulista.
“Estamos criando uma ditadura gay (ou
racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a
seguinte cena: o sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos
apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas gracinhas.
No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para
constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos.
Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo
todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de
trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com
deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa
hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco,
jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que
vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz:
“apenas parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito
contra a própria condição ou está em busca de privilégio.
Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.
“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a
confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o
homem recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar
seus próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos
mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o
interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume
por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua
pretensão. Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer
o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses,
que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela quem
provocou a agressão.
“Os homens também precisam ser
protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre
gêneros seja equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o
homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, levou
mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem pedir a
opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os
homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de
mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao
perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.
“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe
alguém do outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um
colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo vazar, será
carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai ser
sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A
vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação
bastante equilibrada, não?
“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o
politicamente incorreto serve para manter as posições originais:
ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos
ricos fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na
vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são
brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica
com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à
distância do primeiro português daquele salão. Via de regra, a
frase é usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa
branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só não vale
perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”,
com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o
artiodátilo.
“Bolsa Família incentiva a
vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da
bronca – manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada
– por não se encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica
pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da turma do
“pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se
quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que
também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento público
do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos
beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a
vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as
portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é
a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.
“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com
síndrome de Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia nacional
crescia para poucos, às custas de endividamento externo e da
subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde
era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a
imprensa não podia criticar os generais e a sensação de segurança
e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém
investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era
prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os
bolos eram de fato melhores).
“Você defende direito de presos porque
ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende
o uso das leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito,
aplicação de penas e encarceramentos são privilégios bancados às
custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria
efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança
como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um
integrante de uma família seria compensada com a agressão a um
integrante da família do acusado. O acúmulo de experiência,
aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo de
intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos
públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do
fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o
filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de
quem, como ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.
“A criminalidade só vai diminuir quando
tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional
e o corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo
tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime
pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de
ser varrido junto com seus meliantes.
“Político deveria ser tratado por
médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de
cubano”. Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI
morrer e todo político que precisa de tratamento médico DEVE
morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que, na falta
de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as
leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem
governa na canetada.
“Deveriam fazer testes de medicamento em
presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com
a parábola do filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”.
É citada por quem não aceita tratamento desumano contra os bichos,
mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É repetida
também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes
ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que
um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no
outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É
como dizem: teste de laboratório na cela dos outros é refresco.
“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de
argumentos. Estou andando na banguela”.
Fonte: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-penso-logo-relincho-4941.html
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