quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Os principais clichês repetidos nas redie sociais (Racismo)

Não penso, logo relincho

Um glossário com a lista dos principais clichês repetidos pelas redes sociais para justificar, no discurso, um mundo de violência e exclusão. Por Matheus Pichonelli 

por Matheus Pichonelli — publicado 26/11/2013 15:09, última modificação 27/11/2013 20:51 

Dizem que uma mentira repetida à exaustão se transforma em verdade. Pura mentira. Uma mentira repetida à exaustão é só uma mentira, que descamba para o clichê, que descamba para o discurso. E o discurso, quando mal calibrado, é o terreno para legitimar ofensas, preconceitos, perseguições e exclusões ao longo da História. Nem sempre é resultado da má-fé. Por estranho que pareça, é na maioria das vezes fruto da indigência mental – uma indigência mental que assola as escolas, a imprensa, as tribunas, as mesas de bares, as redes sociais. Com os anos, a liberdade dos leitores para se manifestar sobre qualquer assunto e o exercício de moderação de comentários nos levam a reconhecer um clichê pelo cheiro. Listamos alguns deles abaixo com um apelo humanitário: ao replicar, você não está sendo original; está apenas repetindo uma fórmula pronta sem precisar pensar sobre tema algum. E um clichê repetido à exaustão, vale lembrar, não é debate. É apenas relincho*.

“Negros têm preconceitos contra eles mesmos”
Tentativa clássica de terceirizar o próprio racismo, é a frase mais falada das redes sociais durante o Dia da Consciência Negra. É propagada justamente por quem mais precisa colocar a mão na consciência em datas como esta: pessoas que nunca tomaram enquadro na rua nem foram preteridas em entrevistas de emprego sem motivos aparentes. O discurso é recorrente na boca de quem jamais se questionou por que a maioria da população brasileira não circula em ambientes frequentados pela elite financeira e intelectual do País, como universidades, centros culturais, restaurantes, shows e centros de compra. Tem a sua variação homofóbica aplicada durante a Parada Gay. O sujeito tende a imaginar que Dia Branco e Dia Hétero são equivalentes porque ignora os processos históricos de dominação e exclusão de seu próprio país.

“Não precisamos de consciência preta, parda ou branca. Precisamos de consciência humana”
Eis uma verdade fatiada que deixa algumas perguntas no contrapé: o manifestante a exigir direitos iguais não é gente? O que mais se busca, nessas datas, se não a consciência humana? Ou ela seria necessária, com ou sem feriado, caso a cor da pele (ou o gênero ou a sexualidade) não fosse, ainda hoje, fatores de exclusão e agressão?

“Héteros morrem mais do que homossexuais. Portanto, somos mais vulneráveis”
É o mesmo que medir o volume de um açude com uma régua escolar. Crimes como homicídio, latrocínio, roubo ou furto têm causas diversas: rouba-se ou mata-se por uma carteira, por ciúmes, por fome, por motivo fútil, por futebol, mas não necessariamente por causa da orientação sexual da vítima. O argumento é utilizado por quem nunca se perguntou por que ninguém acorda em um belo dia e decide estourar uma barra de ferro na cabeça de alguém só porque este alguém gosta e anda de mãos dadas com alguém do sexo oposto. O crime motivado por ódio contra heterossexuais é tão plausível quanto ser engolido por uma jaguatirica em plena Avenida Paulista.

“Estamos criando uma ditadura gay (ou racial) no Brasil. O que essas pessoas querem é privilégio”
Frase utilizada por quem jamais imaginou a seguinte cena: o sujeito acorda, vê na tevê sempre os mesmos apresentadores, sempre as mesmas pautas, sempre as mesmas gracinhas. No caminho do trabalho, ouve ofensas de pedestres, motoristas e para constantemente em uma mesma blitz que em tese serviria para todos. Mostra documento, RG. Ouve risada às suas costas. Precisa o tempo todo provar que trabalha e paga imposto (além, é claro, de trabalhar e pagar imposto). Chega ao trabalho e é recebido com deferência: “oi boneca”; “oi negão”; “veio sem camisa hoje?”. Quando joga futebol, vê a torcida imitando um macaco, jogando bananas ao campo, ou imitando gazelas. E engasga toda vez que vira as costas e se descobre alvo de algum comentário. Um dia diz: “apenas parem”. E ouve como resposta que ele tem preconceito contra a própria condição ou está em busca de privilégio. Resultado: precisamos de um novo glossário sobre privilégios.

“A mulher deve se dar o valor”
Repetida tanto por homens como por mulheres, é a confissão do recalque, em um caso, e da incompetência, no outro: o homem recorre ao mantra para terceirizar a culpa de não controlar seus próprios instintos; a mulher, por pura assimilação dos mandamentos do pai, do marido e dos irmãos. Nos dois casos o interlocutor acredita que, ao não se dar o valor, a menina assume por sua conta e risco toda e qualquer violência contra sua pretensão. Para se vestir como quer, andar como quer, dizer e fazer o que quer com quem bem quiser, ouvirá, na melhor das hipóteses, que não é a moça certa para casar; na pior, que foi ela quem provocou a agressão.

“Os homens também precisam ser protegidos da violência feminina”
Na Lua, é possível que a violência entre gêneros seja equivalente. Na Terra, ainda está para aparecer o homem que apanhou em casa porque foi chamado de gostoso na rua, levou mão na bunda, ouviu assobios ou ruídos com a língua sem pedir a opinião da mulher. Também não há relevância estatística para os homens que tiveram os corpos rasgados e invadidos por grupos de mulheres que dominam as delegacias do País e minimizam os crimes ao perguntar: “Quem mandou tirar a camisa?”.

“Se ela se deixou ser filmada, é porque quis se exibir”.
Verdade. Mas não leva em conta um detalhe: existe alguém do outro lado da tela, ou da câmera. Este alguém tem um colchão de conforto a seu favor. Se um dia o vídeo vazar, será carregado nos braços como comedor. Ela, enquanto isso, vai ser sempre a exibida. A puta. A idiota que deixou ser flagrada. A vergonha da família. A piada na escola. Parece uma relação bastante equilibrada, não?

“O humor politicamente correto é sacal”
É a mais pura verdade em um mundo no qual o politicamente incorreto serve para manter as posições originais: ricos rindo de pobres, paulistas ridicularizando nordestinos, brancos ricos fazendo troça de mulatos pobres, machões buscando graça na vulnerabilidade de gays e mulheres. As provocações são brincadeiras saudáveis à medida que a plateia não se identifica com elas: a graça de uma piada sobre português é proporcional à distância do primeiro português daquele salão. Via de regra, a frase é usada por quem jura se ofender quando chamado de girafa branca tanto quanto um negro ao ser chamado de macaco. Só não vale perguntar se o interlocutor já foi chamado de “elemento suspeito”, com tapas e humilhações, pelo simples fato de ser alto como o artiodátilo.

“Bolsa Família incentiva a vagabundagem. Pegar na enxada e trabalhar ninguém quer”
Há duas origens para a sentença. Uma advém da bronca – manifestada, ironicamente, por quem jamais pegou em enxada – por não se encontrar hoje em dia uma boa empregada doméstica pelo mesmo preço e a mesma facilidade. A outra origem é da turma do “pegar o jornal e ler além do horóscopo ninguém quer”; se quisesse, o autor da frase saberia que o Bolsa Empreiteiro (que também dispensa a enxada) consome muito mais o orçamento público do que programa de transferência de renda. Ou que a maioria dos beneficiários de Bolsa Família não só trabalha como é obrigada a vacinar os filhos, manter a regularidade na escola e atravessar as portas de saída do programa. Mas a ojeriza sobre números e fatos é a mesma que consagrou a enxada como símbolo do nojo ao trabalho.

“Na ditadura as coisas funcionavam”
Frase geralmente acolhida por pacientes com síndrome de Estocolmo. Entre 1964 e 1985, a economia nacional crescia para poucos, às custas de endividamento externo e da subserviência a Washington; universalização do ensino e da saúde era piada pronta, ninguém podia escolher os seus representantes, a imprensa não podia criticar os generais e a sensação de segurança e honestidade era construída à base da omissão porque ninguém investigava ninguém. Em todo caso, qualquer desvio identificado era prontamente ofuscado com receitas de bolo na primeira página (os bolos eram de fato melhores).


“Você defende direito de presos porque ele não agrediu ninguém da sua família”.
É o sofisma usado geralmente contra quem defende o uso das leis para que a lei seja garantida. Para o sujeito, aplicação de penas e encarceramentos são privilégios bancados às custas dele, o contribuinte. Em sua lógica, o Estado só seria efetivo se garantisse a sua segurança e instituísse a vingança como base constitucional. Assim, a eventual agressão contra um integrante de uma família seria compensada com a agressão a um integrante da família do acusado. O acúmulo de experiência, aperfeiçoamento de leis e instituições, para ele, são papo de intelectual: bons eram os tempos dos linchamentos, dos apedrejamentos públicos, da Lei de Talião. Falta perguntar se o defensor do fuzilamento está disposto a dar a cara a tapa, ou a tiro, quando o filho dirigir bêbado, atropelar, agredir e violentar a família de quem, como ele, defende penas mais duras para crimes inafiançáveis.

“A criminalidade só vai diminuir quando tiver pena de morte no Brasil”
Frase repetida por quem admira o modelo prisional e o corredor da morte dos EUA, o país mais rico do mundo e ao mesmo tempo o mais violento entre as nações desenvolvidas. Lá o crime pode não compensar (em algum lugar compensa?), mas está longe de ser varrido junto com seus meliantes.

“Político deveria ser tratado por médico cubano”
Tradução: “não gosto de política nem de cubano”. Pelo raciocínio, todo paciente tratado por cubanos VAI morrer e todo político que precisa de tratamento médico DEVE morrer. Para o autor da frase, bons eram os tempos em que, na falta de médico brasileiro, deixava-se o paciente morrer – ou quando as leis eram criadas não pelo Legislativo, mas pelo humor de quem governa na canetada.

“Deveriam fazer testes de medicamento em presidiários, não em animais”
Também conhecida como “não aprendemos nada com a parábola do filho Pródigo que tantas vezes rezamos na catequese”. É citada por quem não aceita tratamento desumano contra os bichos, mas não liga para o tratamento desumano contra humanos. É repetida também por quem se imagina livre de todo pecado e das grandes ironias da vida, como um certo fiscal da prefeitura de São Paulo que um certo dia criticou o direito ao indulto de presidiários e, no outro, estava preso acusado de participação na máfia do ISS. É como dizem: teste de laboratório na cela dos outros é refresco.

“Por que você não vai para Cuba?”
Também conhecida como “acabou meu estoque de argumentos. Estou andando na banguela”.

Fonte:  http://www.cartacapital.com.br/sociedade/nao-penso-logo-relincho-4941.html

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